Josué Bila, jornalista que decidiu especializar-se em questões de Direitos Humanos, assina na mais recente edição da revista electrónica internacional de DH (de que ele é editor em Moçambique) um artigo qual diagnóstico do jornalismo em Moçambique. É uma leitura mais perspicaz, mais lúcida e mais "bisturizada" relativamente às minhas interpelações sobre o Estado do Jornalismo Moçambicano, algo que o Bayano Valy também vem fazendo de forma ainda mais inteligente e persistente no seu Nullius in Verba. Este texto do Josué é um "must read". Daí que não me coibi de fazer um "copy and paste" do artigo que ele me enviou por email, o que agradeço bastante pela atenção.
Do jornalismo provinciano e faz-tudo ao jornalismo responsável
Por Josué Bila
(Dedico este artigo ao já falecido jornalista Xavier Tsenane, que, em 2001, me deu as primeiras e inesquecíveis aulas práticas de jornalismo)
“Os profissionais de informação devem evitar falar de generalidades, falar de tudo para dizer pouco; por isso, devem especializar-se em áreas determinadas, apoiadas, porém, numa cultura geral... Só abraça o jornalismo quem tem inteligência clara e amor à verdade” - Brazão Mazula (1999)
O jornalismo moçambicano parece não querer sair do período de jornalismo provinciano, faz-tudo e pré-intelectual, para o jornalismo de especialidade e responsável. Assim colocado, qual é, então, o papel dos jornalistas, órgãos de informação e do Sindicato Nacional de Jornalistas?
Permitam-me, antes, pensar que o jornalismo provinciano e pré-intelectual é aquele em que os jornalistas e os seus órgãos de informação, sem que tenham bases intelectuais sólidas e conhecimento suficiente sobre um ou vários assuntos, entrevistam, noticiam, reportam, opinam e criticam, rastejando-se, deste modo, entre a mediocridade, ignorância e desinformação, à mistura de alhos e bugalhos jornalísticos.
Contrariamente, o jornalismo de especialidade e responsável seria aquele em que os jornalistas e seus órgãos de informação têm preparação intelectual e especialização profissional sólidas, aprofundando determinadas áreas de saber, para entrevistar, noticiar, reportar, opinar e criticar, com ética e responsabilidade jornalísticas.
Em Moçambique, o jornalismo provinciano, faz-tudo e pré-intelectual é o mais abundante e está na moda. Ele está assente na produção rápida de várias notícias e reportagens por um jornalista, sem que antes tenha feito a mínima investigação ou tenha compreendido o assunto, para responder às exigências dos editores ou donos do órgão de informação ou ainda para satisfazer os seus interesses de irresponsabilidade jornalística. Em sete horas, um jornalista noticia ou reporta, sob orientações dos editores ou por iniciativa própria, duas notícias e reportagens de áreas diferentes, cujo conhecimento prévio e sólido é quase nulo. Por exemplo, em um mesmo dia, é capaz de, numa manhã, cobrir um encontro sobre as vantagens dos biocombustíveis e, numa tarde, estar em uma conferência de imprensa sobre o balanço de um evento musical, decorrido no fim-de-semana último. Esses assuntos são diferentes e requerem jornalistas de áreas específicas e não jornalistas provincianos, fazem-tudo e pré-intelectuais: não basta tomar notas e passá-las ao bloco e ao computador. Há que compreender o que se diz; criticar as notas tomadas e sistematizar a informação, de forma coerente, sábia e inteligente para o público.
Um dos defeitos do jornalismo provinciano, faz-tudo e pré-intelectual, misturado com o sensacionalismo provinciano, é perpetuar a ideia de que uma notícia, reportagem ou opinião tem qualidade quando for apresentado antes dos outros órgãos, mesmo que não tenha interesse para o nosso bem cultural, social, político, económico ou diplomático, ou mesmo não tenha sido investigado, como, em muitos dos casos, acontece. Alisto, aqui, notícias e reportagens-escândalo, sem provas. Para quê tanto protagonismo provinciano? Para quê forçar a fama instável, umbilical e negativamente profana? Em nossos órgãos de informação, o ”bom” jornalista passou a ser o jornalista-quantidade e não o jornalista-qualidade - este sabe, prevê, pensa e faz refletir. A forma como se recruta jornalistas, em nosso meio, não difere muito da forma como se admite estivadores. Este jornalismo, o provinciano, faz-tudo e pré-intelectual, ainda impercebe, nega e subestima que a qualidade de uma informação jornalística está na colocação coerente e responsável de dados atempadamente investigados, com intelectualidade, lógica e ética jornalísticas. E isso não é feito antes pelo bloco de notas, câmera, micro-fone, micro-gravador, viatura para reportagem, paginador e etc, mas, sim, por jornalismo e jornalistas intectualmente sofisticados e politicamente robustos, que não só têm uma forma local e redutora de ver e perceber o mundo e o que lhe rodeia. Entre nós, jornalistas há que estão sempre no parlamento, mas nunca leram normas sobre o seu funcionamento e direitos e deveres do deputado; já não digo uma simples leitura de alguns capítulos sobre Estado, Governo, partidos políticos e ciência política, por exemplo – isto prova o quão provinciano, faz-tudo e pré-intelectual é o nosso jornalismo.
Por isso, o jornalismo de especialidade e responsável é o quase-inexistente, entre nós, salvo raras e honrosas excepções. E o processo de sua existência é tão necessária quanto a paz e o desenvolvimento. Sugiro que a classe de jornalistas faça uma organização interna e que o Sindicato Nacional de Jornalistas desperte de sua hibernação, antes que chegue o dia de “paz à sua alma!!!”, o que não faz parte do desejável.
Organização interna
· Que um órgão de informação possa escolher duas ou três áreas-chave sobre as quais prefira trabalhar jornalística e detalhadamente (pelo menos, o telespectador, radiouvinte, leitor ou internauta procurará informar-se, sabendo que nesse órgão não será desiludido, com quantidade sem qualidade, sensacionalismo e protagonismo provinciano);
· Que os jornalistas possam dedicar-se, individualmente, em uma área determinada – lendo, investigando e estudando sobre ela, sempre e sempre;
· Que haja um programa de auto-didatismo e formação superior para todos jornalistas a curto, médio e longo prazos, bolsas de estudos, aumento substancial e robusto de salários e cumprimento de direitos laborais pelo patronato, prémios e intercâmbios nacionais e internacionais. (É louvável o esforço individual de jornalistas que concluiram o ensino superior e outros que estão por concluir, bem como a sua notável pujança jornalístico-intelectual – aqui, incluo também àqueles que, mesmo não tendo o ensino superior, mostram qualidades intelectuais, profissionalmente sofisticadas. Estendo esse louvor à Universidade Eduardo Mondlane que, através da Escola de Comunicação e Artes, oferece anualmente vagas a jornalistas. Devo dizer também que dificuldades intelectuais e académicas há que não devem ser somente imputadas aos jornalistas, mas à forma como está organizada e estruturada a nossa sociedade. A nossa sociedade, de um modo geral, não estimula nem valoriza bons pensadores, profissionais e pessoas dadas a cultura do intelecto. Estimula muito a cultura colorida. Como é possível que uma sociedade que está carente de desenvolvimento tenha mais e só estímulos públicos para jovens cantores e não haja estímulos para jovens intelectuais e jornalistas? A referência supervisível do nosso jovem passou a ser de quem mais dança e canta “dzukuta”, por exemplo; e aquele que lê, pensa, critica e escreve é invisibilizado, cretinizado, subestimado e subaproveitado, bastas vezes. Quais são os critérios que se usam para supervisibilizar uns e invisibilizar outros?). Insisto em apelidar essa atitude de provinciana, rural, mitológica e pré-intelectual, que caracteriza as acções do dia-a-dia da sociedade moçambicana.
· Os órgãos de informação deveriam doravante ter critérios de jornalismo de especialidade e responsável ou jornalismo intelectuamente sofisticado para as redacções (Já é tempo de se trazer/fazer frescura profissional no jornalismo. Os moçambicanos têm direito à informação de qualidade. E o direito humano à informação é inegociável. Se os cidadãos têm esse direito significa que alguém tem o dever de materializá-lo).
Sindicato Nacional de Jornalistas
· Que se (re) organize o Sindicato Nacional de Jornalistas (SNJ), para que responda às exigências de uma organização jornalística contemporânea;
· O SNJ deve promover debates sobre problemas de actualidade jornalística, cultural, social, económica e política de Moçambique, África e do mundo em geral;
· O SNJ precisa de um investimento ou avivamento espiritual e moral: os jornalistas não o tem como sua casa, não o prestigiam, nem o olham como um espaço onde possam discutir ideias, apontar os acertos e erros de sua vida jornalística e ampliar a solidariedade humana e profissional, actualmente, tão perdida quanto necessária. (O que mais se lembra do SNJ é, isso sim, meia ou uma dúzia de jornalistas e intelectuais, que se sentam a uma mesa, cujas ideias de uns, até à idade que têm, não são conhecidas, de forma coerente e marcante. Mas, devo dizer também que jornalistas e intelectuais há que se sentam à tal inesquecível mesa, que são ostentadores e detentores de um quilate racional invejável. Alguns, ainda, são intelectualmente recicláveis. Àqueloutros, não tenho comentários. O jornalista Carlos Humbelino perdeu a vida, há semanas. O SNJ olhou-o de alto a baixo, exorcizando um observar provinciano e pequenez ética sobre o colega, que deu a sua vida pelo jornalismo, independentemente de sua ideologia. Morrerá um outro, porque o nosso fim é esse, veremos uma “cerimónia de Estado”. Continuo a insistir em um jornalismo responsável e de ética social).
· Que o SNJ possa dialogar com o Governo sobre a isenção de impostos e outras facilidades para a chamada imprensa privada, porque esta presta igualmente serviço público de informação em condições materiais e financeiras desajustadas. Quem lê um jornal ou radiouve ou ainda televê alguma informação em um órgão privado é o público, o que significa que os privados prestam serviço público. Em temáticas de direito à informação, tenho dificuldades de refletir onde começa e termina o serviço público ou privado. Por exemplo, quando se noticia, por qualquer que seja o órgão de informação privada, que o Governo vai construir, ainda este ano, sete escolas no distrito de Manganja da Costa, província da Zambézia, não sei se o cidadão recebe essa informação de forma privada ou pública (os cinco sentidos e as informações valiosas que o cidadão recebe são privados ou públicos?). Estou certo, ao pensar que recebe a informação e cresce-lhe a esperança de que o seu país está a desenvolver. A isso não devemos fechar os olhos. E o desenvolvimento de Moçambique não é um assunto privado, mas de interesse público. É tempo de se discutir o sentido de público e privado, na área jornalística e no direito à informação. Aliás, embora pareça-me meio cooptativo, a decisão da presidência da República de, em viagens nacionais e internacionais do chefe de Estado, se incluir também jornalistas de órgãos privados, é uma experiência a sublinhar. Mas, há que se apoiar em meios aos órgãos privados, para que façam trabalho onde o chefe de Estado ou elemento do Governo não esteja – isto pode reduzir a auto-censura e elevar a liberdade informacional. Penso não ter estabelecido alguma causa-efeito.
· Que o SNJ possa dialogar e criar memorandos de entendimento com instituições de ensino superior para a concessão de bolsas de estudo ou vagas;
· Que o SNJ possa lutar pelo cumprimento de direitos e deveres de jornalistas; e
· Que o SNJ possa internacionalizar-se, porque, nas condições nas quais se encontra, ele é muitíssimo provinciano e decadente (há sete anos que presto alguma atenção nele). Caso o SNJ saia desse provincianismo e hibernação, poderá ajudar esta proposta contemporânea e cosmopolita: jornalismo de especialidade e responsável.